Monday, May 30, 2011

Crónicas ao acaso - II



“Meu amigo vendo-lhe isto como se fosse p´ra mim!”.
Ao ouvir isto percebi que era tarde de mais. Tinha sido enganado.
Trafulhice pura. Sexo não consentido.
Foi há um ano quando o destino me obrigou a comprar um carro novo.
“Destino” é o que chamo à companhia de seguros que deu pelo meu carro o mesmo que eu dei pelo meu bonsai interior.
O acidente, muito simples. Dois carros, um cruzamento. Eu vi o stop, uma senhora de 78 anos não.
O vendedor de carros era, como todos os vendedores de carros, um gajo simpático. Chamava-se Mário e contou-me toda a sua vida. Era casado pela 3ª vez e tinha combatido no Ultramar. Quando me abriu o capot do 1º carro, perguntei-lhe se o carro tinha combatido a seu lado.
Soltou uma gargalhada e mostrou-me um outro.
Preto, baixinho, sem capota. Uma quase “bomba”, ideal para gajos com a minha carteira ou com a cara do Mário conseguirem companhia para o cinema.
Sentou-se no carro e obrigou-me a sentar-me também. Começou a mexer em todos os botões e a explicar-me para que serviam. Eu ia acenando com a cabeça e contava os segundos para fugir dali.
-“Repare no rádio, basta rodar o botão do Tune com o indicador e ele vai procurando automaticamente os postos”, explicou.
-“Então mas isso não fazem todos?”
-“Com esta qualidade? Nada disso amigo!”.
Quando me chamou amigo percebi que estava a ser enganado de novo.
A segunda violação da tarde.
Fingi que acreditei,claro.Acenei com a cabeça e assisti ao resto da palestra.
Durante hora e meia mostrou-me o carro de lés-a-lés.
Comprar um carro é como terminar uma relação com alguém que apesar de tudo nos diz muito. Pondera-se, pondera-se, pondera-se. Pesam-se todos os prós e contras, decide-se.
E no fim sentimos sempre que optámos mal.
Assinei uma dúzia de papeis e lá comprei o carro. Preto, baixinho, sem capota.
Uma quase “bomba” que de facto nos impede de ir ao cinema sozinhos.
Nunca percebi se o negócio tinha sido realmente mau. Livrei-me do carro passado um par de meses.
“Livrei-me” é o termo que uso para apelidar o amor mais efémero da minha vida.
O acidente, muito simples. Dois carros, um cruzamento.
Um senhor de 45 anos viu o stop.

Eu vinha a brincar com o rádio.

Sunday, May 22, 2011

Crónica ao acaso I



"Sair à noite sozinho é novo preto", disse-me alguém em quem confio muito.
A última grande moda.
Duvido sempre das modas. E resolvi ir comprovar por mim próprio.
Lisboa foi, como sempre, o palco. O sítio, conhecido como poucos.
O melhor casaco. Os sapatos certos.
Quilos de perfume.
Entrar sozinho foi já de si humilhante.
-"Boa noite, quantos são?".
-"Sou só eu".
O senhor que estava à porta, "simpático" como costumam ser todos, deixou-me entrar em grandes perguntas.
Tudo estava igual desde a última vez que lá tinha estado há alguns meses.
Pouca luz, puffs coloridos e sobrelotados.
Pequenos grupos de gente bem cuidada. Os senhores com as esposas na cama e senhoras com os esposos em Angola.
Um casal bem novinho aos beijos. Ela em pé, ele sentado (pudera).
Tudo normal.
Aproximo-me do balcão e peço o costume. Pela metade e com pouco gelo.
A rapariga que me atende, bonita como costumam ser as raparigas que atendem, tem um olhos do tamanho do mundo.
Morena, cabelo escuro, e uma dessas tatuagens japonesas no ombro.
-"É tudo?", pergunta.
-"Sim, vim sozinho".
-"Vens sair sozinho?"
-"Sim, é o novo preto. A última grande moda"
Ela sorriu, deu-me o meu troco e atendeu o gajo do lado.
Se com amigos era um desastre na arte do engate, sozinho sou ridículo.
Terminei o primeiro copo e pedi o segundo.
Ela sorriu de novo. Serviu-me e aproximou-se do meu ouvido.
"Se te aguentares depois deste, saio daqui a uma hora".
Eu nem queria acreditar. Um cliché enorme por certo, mas quem sou eu para discuti-lo.
Terminei o segundo copo e pus-me dali para fora.
Saí por onde tinha entrado e esperei por ela à porta a dançar a música vinda lá de dentro.
Até o DJ estava do meu lado. Van Morrison.

Well it´s a marvelous night for a moondance
with the stars up above me in your eyes
a fantabolous night to make romance...

Ela cumprimentou os senhores da porta, que me acenaram como que cumprimentando-me pelo feito.
Beijou-me como se os meus lábios fossem velhos conhecidos, e pediu-me que a levasse a casa.
Era pelo menos isso que eu esperava. Ela não apareceu.
Esperei horas e nada.



Telefonei a um amigo, e pedi-lhe que me fosse buscar.

Tuesday, May 3, 2011

03-05-2011



Hoje não a vi á janela.
Esperei horas escondido.
Saiu e entrou montes de gente.
Ela nada.
Sabia que este dia chegaria mais cedo ou mais tarde.
Que um dia pagaria por tudo.
Hoje não a vi à janela e sei que não a verei mais.
Custa-me muito claro. Não lhe disse tudo.
Nunca lhe disse tudo. Fui guardando muita coisa.
Palavras que ficaram para mais tarde.
Cartas. Piadas velhas.
Um poema foleiro num guardanapo:
Tu, que não és mais do que isso mesmo,
és para mim, tudo.
Braços, pernas, olhos e boca.
Um sonho, que é pesadelo ao mesmo tempo.
A morte mais doce de todas.
Um lenço bonito vermelho, que nem eu sei de onde vem.
O talão do nosso primeiro jantar.
Dois bilhetes de avião,
o Gets Next To You do Al Green,
sandálias,
uma Leica,
uma camisa de dormir,
um pack de Camel,
fotografias,
do Inverno, claro.
Intrigava-me o seu fascínio pelo Inverno.
O sorriso que trazia na cara quando chovia a potes.
Tenho também o seu guarda-chuva.
Nunca o usou. Odiava.
Hoje não a vi à janela e sei que foi de vez.
Que o meu tempo acabou.
Que nunca lhe devolverei o que é seu.
Que nunca saberá a verdade.
Que é, para mim, tudo.
Um pesadelo, que foi sonho ao mesmo tempo.
A morte mais doce de todas.